Notícia
Entrevista
Deputada Erika Hilton destaca a importância da inclusão de pessoas trans e travestis no mercado de trabalho
Erika Hilton, do PSOL de São Paulo, é a primeira deputada federal negra e trans eleita na história do Brasil. Seu primeiro mandato na câmara federal foi conquistado com 256.903 votos no ano passado. Em 2020, foi a vereadora mais votada do país, exercendo, nos dois anos seguintes, a presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Municipal de São Paulo.
Em conversa com o Portal Serpro, a parlamentar faz uma análise franca e informada sobre os obstáculos enfrentados pelas pessoas trans e travestis no mercado de trabalho e no mundo digital, destacando o papel da educação e da tecnologia como ferramentas de ação política e mudança social. Suas respostas revelam a complexidade das barreiras e apontam caminhos concretos para a transformação dessa realidade.
A deputada também fala sobre inciativas parlamentares, projetos de lei e ações de empresas públicas que trabalham para acelerar o processo histórico de inclusão dessas comunidades, citando o exemplo do Programa Agora 3T do Serpro, edital que promove uma seleção pública para patrocínio de projetos de impacto social para pessoas trans e travestis.
“Quando instituições públicas lideram essas ações, com uma postura ativa contra a discriminação na prestação de serviços ou nas atividades econômicas [...] demonstram para a sociedade brasileira que o Estado se importa em cumprir o seu papel de criar possibilidades de dignidade para todas as pessoas. Criam, portanto, uma agenda de direitos humanos com impacto significativo na promoção da igualdade, inclusão e diversidade”, analisa a entrevistada.
Quais são os principais desafios enfrentados pelas pessoas trans e travestis no mercado de trabalho atualmente?
Erika: Faltam principalmente igualdade de oportunidades, acesso à profissionalização e educação formal, além de suporte, em muitas empresas, para que essas funcionárias e funcionários exerçam suas atividades e progridam na carreira sem sofrer violência institucional e de gênero. Contudo, ressalto que os desafios são estruturais, há discriminação transfóbica antes mesmo do acesso ao mercado de trabalho. Por isso, 90% das pessoas trans e travestis são impulsionadas compulsoriamente à prostituição, conforme os dados da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) demonstram.
O mercado de trabalho formal, no geral, rejeita nossos corpos, então, o que resta para sobrevivência são os subempregos, as profissões precarizadas e outros, que apesar de serem dignos, expõem a violências e vulnerabilidades que poderiam ser evitadas a partir de direitos trabalhistas e existenciais dignos. Nós somos submetidas à discriminação e à estigmatização excessiva associada ao preconceito, o que envolve, portanto, o não acesso à direitos humanos fundamentais como educação, saúde e moradia digna.
Em sua opinião, quais são os benefícios para empresas e sociedade quando se promove a inclusão de pessoas trans e travestis?
Do ponto de vista do desenvolvimento econômico, a inclusão de pessoas trans e travestis nas empresas traz uma ampla gama de benefícios. Aumenta a capacidade financeira desses grupos vulnerabilizados, pois lhes proporciona acesso a oportunidades de emprego e desenvolvimento de carreira, o que pode melhorar suas condições socioeconômicas. Além disso, a diversidade de talentos e perspectivas trazida por profissionais trans e travestis pode impulsionar a inovação e a criatividade nas empresas, aumentando a competitividade no mercado.
Em termos de inclusão social, isso contribui para a redução de desigualdades, criando ambientes de trabalho capazes de atender diferentes contextos sociais. Além disso, fortalece a representatividade e a visibilidade dessas comunidades no contexto profissional, adotando uma postura positiva do mercado ao contratar pessoas trans e travestis.
Como podemos superar possíveis resistências e preconceitos dentro das próprias empresas ao lidar com questões de diversidade de gênero?
Ninguém nasce odiando o outro. Penso que a educação é uma ferramenta poderosa contra o discurso de ódio e preconceitos. Promover espaços de aprendizagem, campanhas, formações e uma agenda de ações permanentes, dentro e fora das empresas, é uma forma de contribuir na luta contra a discriminação de qualquer pessoa.
São alguns dos caminhos para se construir um ambiente de trabalho seguro e acolhedor: políticas de profissionalização para progressão na carreira; respeito e inclusão do nome social nos cadastros internos, externos e nos objetos de identificação dos funcionários, como crachás; garantir acolhimento e respeito no processo de transição de gênero dos funcionários e, eventual necessidade de afastamento em razões de procedimentos de adequação de gênero; garantir o uso de banheiros e vestiários, de acordo com a autodeclaração de gênero das pessoas; garantir, também, que os servidores adequem-se à uniformização conforme sua expressão de gênero, além de garantir o direito à privacidade desses servidores, impedindo acesso a dados sensíveis de identificação, como o nome morto, por parte de colegas de trabalho e outros, sem autorização.
Já com objetivo de enfrentar qualquer violência sofrida no ambiente de trabalho, deve-se adotar protocolos de respeito à diversidade de gênero e canais para denunciar violências, com mecanismos que impeçam represálias contra as vítimas.
Como a senhora enxerga a interseccionalidade entre questões de gênero e raça quando se trata da discriminação enfrentada pelas pessoas trans e travestis no mercado de trabalho?
A interseccionalidade refere-se à forma como diferentes sistemas de opressão, como o racismo e a transfobia, se entrelaçam, afetando de maneira única e complexa a vida e as experiências das pessoas trans e travestis que também pertencem a diferentes grupos raciais e/ou étnicos.
As mulheres trans e travestis, em geral, já enfrentam barreiras significativas para o acesso ao emprego e para a ascensão em suas carreiras, devido à transfobia e ao estigma associado à sua identidade de gênero, além da baixa escolarização e profissionalização. Entretanto, quando a questão racial é adicionada à equação, os obstáculos se multiplicam, criando um cenário ainda mais desafiador.
No contexto do mercado de trabalho, as pessoas trans e travestis negras enfrentam desafios adicionais, resultado de múltiplas formas de exclusão, marginalização e invisibilidade nas políticas públicas e privadas de acesso ao trabalho digno. Para esse grupo, as únicas alternativas oferecidas têm sido a subalternidade e a precariedade, expostas nos índices socioeconômicos, como salários mais baixos, dificuldades de acesso à educação e treinamento, e menor representatividade em posições de liderança e poder nas empresas.
Isso é resultado das desvantagens estruturais que pessoas trans e travestis de diferentes origens étnicas sofrem. Existe uma limitação das possibilidades de crescimento profissional e econômico para nós.
E sobre o papel das empresas públicas? Qual é a importância desse segmento liderar esforços para combater a discriminação de pessoas trans e travestis?
Empresas públicas têm um papel fundamental na sociedade, pois sua influência abrange não apenas seus empregados, mas também seus clientes e a comunidade em geral, orientando para práticas de responsabilidade social antidiscriminatórias, com efeitos econômicos e sociais, podendo gerar efeitos multiplicadores positivos para o enfrentamento da transfobia institucional que impede pessoas trans de acessar o mercado de trabalho e participar do funcionalismo público.
Quando instituições públicas lideram essas ações, com uma postura ativa contra a discriminação na prestação de serviços ou nas atividades econômicas, seja por meio de ações afirmativas ou de programas com finalidade o interesse social de minorias vulnerabilizadas, demonstram para a sociedade brasileira que o Estado se importa em cumprir o seu papel de criar possibilidades de dignidade para todas as pessoas. Criam, portanto, uma agenda de direitos humanos com impacto significativo na promoção da igualdade, inclusão e diversidade.
O trabalho e o acesso à renda representam condições fundamentais à dignidade de um indivíduo. Quando as instituições públicas enxergam a urgência e necessidade de incluir populações que sofrem com a invisibilidade e obstáculos sistemáticos de acesso ao mercado de trabalho formal, é uma sinalização de que o Estado tem responsabilidade em reparar suas omissões em promover o trabalho digno para todos. Nesse sentido, as empresas públicas podem modelar novo apelo competitivo, liderando mudanças culturais para promoção de oportunidades iguais de emprego.
Quais políticas e iniciativas podem ser implementadas pelas empresas públicas para garantir um ambiente de trabalho seguro e acolhedor para pessoas trans e travestis?
As empresas públicas devem cumprir com a responsabilidade social fundamental em relação à sociedade que servem, já que são financiadas com recursos públicos. Devem refletir a diversidade e a pluralidade da população que atendem. Por isso, promover e garantir práticas institucionalizadas de inclusão e a diversidade em quadros de empregados das empresas públicas é absolutamente essencial e de alta relevância para o desenvolvimento das práticas econômicas atuais.
Destaco que essa inclusão deve ser em todos os níveis de carreira e de tomadas de decisão. Não deve se limitar apenas ao quadro de empregados mais baixos, mas também deve abranger os altos cargos de liderança. Além disso, ao priorizar a inclusão, as empresas públicas podem criar ambientes de trabalho mais saudáveis e produtivos, pois equipes diversas tendem a ser mais criativas, inovadoras e resilientes, principalmente se fugirem das práticas de tolkenização - que é a prática de colocar unicamente uma pessoa de grupos minorizados no espaço social, com intuito de não parecer reprodutor de discriminações.
Quais são os exemplos de empresas públicas que já estão fazendo um bom trabalho na inclusão de pessoas trans e travestis?
Acho que a iniciativa do Serpro é um bom exemplo. Há inúmeras organizações sociais, que diante da ausência de recursos, não deixam de fornecer espaços de formação e oportunidades para trans e travestis. É bacana ter um edital que possa potencializar projetos de inclusão sociodigital para essas pessoas.
Quais são os principais projetos de lei ou iniciativas que a senhora está apoiando para promover a igualdade de oportunidades para pessoas trans e travestis no âmbito das empresas públicas?
O meu mandato em conjunto com 15 organizações e coletivos estudantis trans, apresentou Projeto de Lei n° 3109/2023, que estabelece reserva de vagas para pessoas trans e travestis nas universidades federais e demais instituições federais de ensino superior. Mas sabemos que não devemos incidir somente na entrada das pessoas trans e travestis na graduação, devemos garantir a permanência desses estudantes, com uma política de inclusão social que leve em consideração os desafios de identidades “transgressoras” no ambiente profissional e acadêmico.
Quando fui vereadora da cidade de São Paulo, na câmara municipal, apresentei iniciativas para promover a igualdade de oportunidades para pessoas trans, como o Projeto de Lei n° 144/2022, que dispõe sobre cotas para o ingresso de pessoas trans no serviço público municipal, além de designar a criação do Selo Igualdade Trans, para autorizar incentivos fiscais às empresas que contratarem pessoas trans. Agora estamos elaborando propostas semelhantes para o âmbito federal.
O acesso aos meios digitais de comunicação social tem se mostrado fundamental nos dias atuais. Como a senhora enxerga a importância desse acesso para a inclusão de pessoas trans e travestis na sociedade?
É um imperativo político assegurar que as pessoas trans e travestis tenham espaço nos debates públicos, contribuindo para a construção de uma sociedade mais plural, diversa e justa. O acesso aos meios digitais de comunicação social faz parte do exercício cidadão e, por isso, é central para participação política de todas as pessoas, sendo também uma ferramenta política crucial para a inclusão de pessoas trans e travestis na sociedade. Esse acesso aos meios digitais proporciona uma plataforma democrática para que essa comunidade possa reivindicar direitos, compartilhar suas experiências e conquistas, e, assim, romper barreiras, preconceitos e exercer seus direitos fundamentais. Por meio de plataformas digitais, a nossa comunidade pode encontrar espaços de acolhimento em saúde e cidadania, conexão com pares com realidades semelhantes e acesso a informações que contribuem para o fortalecimento de nossas identidades e lutas por direitos e reconhecimento.
No âmbito político, o acesso aos meios digitais permite que as pautas e reivindicações das pessoas trans e travestis ganhem maior alcance e impacto, semelhante às disputas pela criminalização da LGBTfobia e pelo reconhecimento das identidades trans para acesso ao registro civil. As redes sociais, por exemplo, tornam possível mobilizar um maior número de pessoas em torno de causas e campanhas de sensibilização, exercendo uma pressão positiva sobre as políticas públicas e a sociedade como um todo. Por isso, as políticas de inclusão digital e de combate à exclusão digital devem ser priorizadas, garantindo que todas as pessoas, independentemente de sua identidade de gênero, tenham acesso equitativo aos meios de comunicação social.
As tecnologias digitais também podem ser aliadas no acesso a oportunidades de emprego e empreendedorismo. Que ações podem ser desenvolvidas para fomentar o acesso dessas pessoas a essas oportunidades por meio da internet?
Diante do cenário das tecnologias digitais, é inegável o potencial que elas oferecem para ampliar o acesso a oportunidades de emprego e empreendedorismo para diversos grupos sociais, incluindo pessoas trans e travestis. No entanto, ainda enfrentamos desafios significativos relacionados à invisibilidade e ao baixo financiamento que afetam essa comunidade, dificultando o pleno aproveitamento das vantagens proporcionadas pela internet. Para superar essas barreiras, uma estratégia fundamental seria investir em programas que promovam a inclusão digital, assegurando que pessoas trans e travestis tenham acesso à internet e às tecnologias necessárias para se beneficiarem do meio digital.
Pessoas trans são diversas, atuam nos setores de cultura, entretenimento e na produção de conhecimento, mas as barreiras discriminatórias limitam suas atuações. A capacitação e formação em habilidades digitais são essenciais para que essa comunidade possa aproveitar as oportunidades oferecidas pela internet. Treinamentos específicos sobre busca de emprego, marketing digital e empreendedorismo online podem empoderar e capacitar essas pessoas para competir de forma mais equitativa no mercado de trabalho e no ambiente empreendedor.
No campo do empreendedorismo, parcerias com organizações da sociedade civil, empresas privadas e instituições de ensino podem ser estabelecidas para incentivar a criação, o desenvolvimento e o financiamento de startups e pequenos negócios liderados por pessoas trans e travestis. Para isso, programas de mentoria, suporte técnico e acesso a financiamento adequado devem ser disponibilizados, visando impulsionar o crescimento econômico dessa comunidade, além de impulsionar metas de contratação afirmativas para garantir que ninguém seja deixado para trás.
Como a senhora acredita que a sociedade como um todo pode se mobilizar para garantir que as pessoas trans e travestis tenham igualdade de acesso e oportunidades nos meios digitais de comunicação?
Como deputada, é evidente que garantir igualdade de acesso e oportunidades nos meios digitais de comunicação para pessoas trans e travestis é uma questão urgente para mim, que merece atenção e ação concreta na atividade política. Precisamos enfrentar os desafios existentes e trabalhar em conjunto para criar um ambiente digital mais inclusivo e respeitoso para essa comunidade. Inclusive, também enfrento desafios dessa ordem, com ataques transfóbicos, que muitas vezes expressam, não só o discurso de ódio facilitado por muitas mídias, mas também ataques no sentido de limitar minha ação política, orientada pela violência política de gênero que ainda é costumaz nas mídias.
Primeiramente, é essencial que os órgãos governamentais e legisladores atuem no desenvolvimento de políticas e leis que assegurem a proteção dos direitos das pessoas trans e travestis no ambiente digital. Isso inclui medidas para combater o discurso de ódio, a discriminação e a violência online, além de promover a diversidade nas plataformas de comunicação, sejam governamentais ou privadas.
Muitas plataformas estigmatizam as pessoas trans, as colocando como representatividade negativa em suas atividades online, desmonetizando suas produções e/ou usando os algoritmos como limitadores na distribuição de conteúdos da comunidade trans e travesti. Precisamos, portanto, demandar pela garantia que suas vozes sejam ouvidas e suas experiências compartilhadas, de maneira equânime, a fim de quebrar estereótipos e promover uma compreensão mais profunda de nossas realidades e vulnerabilidade.
A capacitação e o treinamento de profissionais de mídia e tecnologia são fundamentais para promover uma abordagem mais inclusiva, mas também incluir profissionais com orientação e expressão de gênero diversas pode contribuir ainda mais para o enfrentamento desses vieses discriminatórios. Investir em programas que sensibilizem sobre questões de gênero, identidade e diversidade pode auxiliar na criação de conteúdo mais respeitoso e representativo.