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Direitos ao esquecimento, à privacidade e à informação: como eles se relacionam?
O direito ao esquecimento não é uma novidade do século XXI. Já desde o século XVIII, e com mais ênfase no início do século XIX, há notícias de construções bastante sofisticadas em prol dessa tese.1
O que, contudo, a tese defende? Defende que todos, independentemente de sua condição pessoal, têm direito a que situações e circunstâncias desagradáveis ou constrangedoras sejam retiradas de seu “histórico pessoal”, prevenindo a “tatuagem da reputação”. A crítica social deve recair sobre a conduta do indivíduo, mas não sobre sua personalidade e nem de modo perpétuo.2
O próprio direito penal – o mais grave dos direitos e o último direito a ser aplicado – já compreende, nos dias atuais, a importância de se direcionar a sanção ao ato praticado e não à pessoa do agente. E nem estamos falando das tendências mais “garantistas”. O direito penal tradicional já cedeu espaço a esse princípio e à importância de não seguir a feição do que seria um “direito penal do inimigo”. Não se admite, em nosso modelo, “o direito penal dos outros”, o direito feito para “aqueles”; para os “estranhos”; para “os ‘não-nós’ que delinquem”.
Trata-se de um conceito fundamental decorrente do princípio da dignidade humana e do entendimento pacífico de que todos têm o direito de sobreviver ao estigma, ao embaraço, mas, sobretudo, ao constrangimento de ter sua pessoa e seus valores associados de forma perpétua a uma dada condição ou a um dado fato.
Como um direito de índole humana e fundamental, limita-se, complementa-se e conflita com o direito à informação e com a liberdade de expressão, ambos direitos de mesma categoria e status constitucional. Nesse conflito, o judiciário examina, pondera e aplica a decisão que melhor atenda aos interesses da sociedade e das partes, em cada caso concreto.
Na Europa
A discussão em torno da proteção ao “direito de ser deixado em paz” reemerge, agora, na era digital, a partir de dois cases específicos ligados às mídias sociais: dois cidadãos europeus usuários de serviços da linha “web 2.0”3 (Google e Facebook) suscitaram, perante os poderes constituídos daquele continente, a discussão em torno de seus direitos de pessoa humana.
O case Mario González
O primeiro case refere-se à história de Mario Costeja González, um advogado que passou por situação constrangedora (um apartamento que quase teria sido levado à hasta pública como pagamento de dívidas) veiculada em periódicos e perpetuada nos
motores de busca do Google.
No caso de González, a matéria acabou por ser julgada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, já que envolvia interpretação do disposto na Diretiva 95/464, de 24 de outubro de 1995, relativa à proteção das pessoas naturais no tocante ao tratamento de
dados pessoais e de sua livre circulação.
O exame do texto da decisão5 permite observar o cuidado da corte julgadora de não deixar que a tutela ao direito de esquecimento se estendesse à dimensão pública das relações humanas, preservando tanto o direito ao esquecimento, de um lado, quanto o direito à informação, de outro. Pode-se ver, na decisão, que a garantia dada ao “direito de ser deixado só”, no entendimento da referida corte, não pode representar uma redução da dimensão pública e do direito à informação e ao conhecimento.
Curioso que tenha havido, por parte do colegiado, a preocupação de não deixar que sua jurisdição, no caso concreto, em proveito de um particular, representasse uma indesejada extensão prejudicial ao direito de informação.
O case Schrems
O segundo case foi o do estudante austríaco Maximilian Schrems, que, a partir de um trabalho acadêmico sobre privacidade, elaborado inicialmente quando estudava nos Estados Unidos, constatou que seus três anos de usuário do Facebook, correspondentes a 1.200 páginas de informação pessoal, jamais eram apagados, por mais que ele se desligasse daquela rede social e por mais que solicitasse formalmente tal deleção.
Em virtude dos dois processos, a Comissão Europeia se mobilizou no sentido de regrar a atuação de serviços de redes ou de manipulação de dados pessoais, como é o caso do Facebook e do Google, consagrando com clareza o direito ao esquecimento e à deleção de informações de seus usuários. A lei garante aos usuários o poder de ditar quando suas informações haverão de ser deletadas e garante o correspondente direito de ação quando esse desígnio vier a ser violado. É o primado do princípio da autodeterminação informativa.
As reações de ambos (Facebook e Google) foram opostas. Richard Allan, do Facebook, posicionou-se no sentido de que o valor de seus serviços está na disponibilidade e integridade dos dados de seus clientes e na segurança de tê-los resguardados. Para Allan, seus usuários estão preocupados justamente com o oposto: a permanência de seus dados (disponíveis), e uma lei europeia que garanta o direito ao esquecimento constituirá um erro.6 Já o chairman do Google, Eric Schmidt, manifestou, em palestra na Universidade de Manhatttan, sua posição no sentido de que a internet precisa ter o que ele chama “botão de delete”, garantindo a possibilidade de eliminar registros indevidos ou constrangedores. Para ele, o lema “uma vez online, sempre online” não deve ser valorizado: “Há situações em que apagar é a coisa certa a fazer”.7
No Brasil
O direito ao esquecimento, no Brasil, exibe casos referenciais não tão ligados à economia digital, mas igualmente importantes em termos de revitalização do princípio da autodeterminação. Dois julgamentos do STJ evocaram a valorização do direito ao esquecimento, embora cedendo, em ambos os casos, em prol do direito à informação.
O case Curi (família Curi versus Globo)
O primeiro caso foi o julgamento do recurso especial n° 1.335.153/RJ, interposto por Nelson Curi e outros, contra Globo Comunicação e Participações S/A. O recurso especial em questão foi interposto de decisão proferida em ação na qual a família de Aída Curi se indignou contra uma matéria específica evocando os 50 anos do acontecimento em que a vida da jovem fora ceivada sob condições trágicas.8
O STJ, no caso, decidiu, sim, pela garantia do direito ao esquecimento, sem contudo ter garantido aos familiares um pretendido direito à indenização.9 A ponderação de valores na discussão dos princípios em conflito (privacidade e acesso à informação) mostra-se uma constante, como pode ser visto na dicção do relator, quando da apreciação do mérito.10 E, na linha desse raciocínio, o magistrado pondera que é preciso dar transparência e conhecimento à resposta estatal sem deixar frutificar o alimento à mera curiosidade mórbida.
Hoje o caso Aída pende de decisão final do Supremo Tribunal Federal, em recurso extraordinário, sob a relatoria do ministro Dias Toffoli. O caso encontra-se concluso para julgamento e, para sua completa discussão, foi realizada, em 2017, concorrida
audiência pública.11
O case Candelária
O segundo caso em que o princípio do direito ao esquecimento, como corolário do princípio da dignidade humana, foi aplicado de forma explícita foi o da matéria jornalística promovida pela mesma ré a respeito da chamada “chacina da Candelária”. Jurandir Gomes de França, o autor, ajuizou ação de reparação de danos morais contra a TV Globo Ltda. (Globo Comunicações e Participações S/A), em decorrência de matéria por ela veiculada.
O informe injustamente “ressuscitado” pela matéria jornalística foi relativo ao fato de o autor ter sido indiciado como coautor da citada chacina ocorrida em 23 de julho de 1993, no Rio de Janeiro. O autor, ao final submetido ao Tribunal do Júri, veio a ser absolvido por unanimidade.
Tendo sido procurado para dar entrevista, recusou-se. O programa, no entanto, foi ao ar em junho daquele ano (2006) e no conteúdo da matéria foi informado que o autor foi um dos indiciados – mas que fora absolvido. A matéria de fato não faltou com a verdade, mas a vida do autor sofreu uma reviravolta, a ponto de ter que se mudar da comunidade em que vivia, em função da hostilidade que veio a sofrer, com risco para sua própria família. No caso, o STJ se manifestou pela proteção do direito ao esquecimento com manutenção da responsabilidade pelo ressarcimento12 .
E, pouco antes desses eventos, as VI Jornadas de Direito Civil haviam consagrado o enunciado de n° 53113, cujo teor, na íntegra, foi devidamente colacionado nos dois julgados acima discutidos. Dois elementos são especialmente importantes, no enunciado. Primeiramente, o fato de que as novas tecnologias vêm trazendo especial preocupação no tocante ao aspecto da dignidade. Assim, se não estamos falando de uma “novidade” ao tratar o direito ao esquecimento, estamos falando, sem sombra de dúvida, de um novo contexto, mais complexo, mais lesivo, mais perigoso. Nesse sentido, a ressalva do relator14, nos dois recursos especiais é de grande felicidade.
Em segundo plano, na sua parte final, o enunciado vem – tal qual o tribunal europeu, no caso González; tal qual a União Europeia, no caso Schrems; tal qual as demais decisões que vimos revisitando até aqui – oferecer ressalva categórica à importância da “dimensão pública” e ao direito à informação.
O relator demonstra, ainda, que a nossa Corte Superior assentou entendimento de grande importância em prol da proporcionalidade na aplicação do princípio: se até mesmo aos condenados é dada proteção em prol do direito ao esquecimento, com muito mais razão essa proteção deve ser dada a quem, como Jurandir Gomes de França foi, ao final de contas, inocentado, com negativa de autoria.15
Sobre o argumento da veracidade, os fundamentos da decisão trazem importante aspecto de valor doutrinário: o simples fato de se excepcionar a veracidade não traz validade ao aspecto danoso da perenidade inaceitável.16 E foi justamente isso que aconteceu com Jurandir: a desconfiança comunitária se ascendeu em torno de uma possível absolvição acidental, especialmente porque a reportagem trazia também um viés de crítica à incompetência dos órgãos de investigação.
Nos últimos três anos, temos visto o aumento fragoroso, nas mídias sociais, de uso do bordão “bandido bom é bandido morto”, apontando para uma suposta inércia (infundada) dos órgãos públicos na apuração e condenação de criminosos. O que tenho visto e identificado, em minhas prospecções acadêmicas, na Universidade de Brasília (UnB) e na Comissão de Segurança Pública da OAB/DF, ao contrário, é um eficientismo penal insaciável com o abarrotamento das instituições carcerárias e com o aumento da chamada “violência institucional”, em um ciclo vicioso incessante.
Como o STF ponderará o conflito de princípios fundantes?
Há uma justificada esperança de que o STF julgue o caso Aída Curi (já “mais que maduro, para tanto”) ainda no ano de 2019. Na aplicação do princípio da proporcionalidade, o STF tenderá por valorizar o direito ao esquecimento e à privacidade da família Curi? Ou patrocinará a valorização do direito à informação e à liberdade de expressão jornalística da Globo?
Nosso palpite é no sentido de que prevalecerá a segunda hipótese. Em que pese a dor da família e os aspectos pessoais de sua vida, em julgamento recente o mesmo STJ abraçou essa vertente.
Trata-se do julgamento da Adin n° 4.815 (Proc. 9964502-12.2012.0.01.0000), em que o STF decidiu que os biografados não têm direito a uma “censura prévia” ou a um direito de “autorizar” biografias a seu respeito. Prevaleceram, no caso, o direito ao
conhecimento, à informação e à liberdade de expressão. Porém, essa questão das biografias e seus desdobramentos será objeto de outro artigo específico, em matéria de privacidade e proteção de dados. Nele, discutiremos o conflito entre o direito à intimidade e o direito à informação, examinando cases reais em discussão.
O autor
É advogado graduado pela Universidade de Brasília (UnB); pós-graduado em propriedade intelectual pela GWU (The Minerva Project); especialista em Gestão de Segurança da Informação pela UnB; pós-graduado em crimes cibernéticos pela Escola da Magistratura DF. É mestre em Propriedade Intelectual pela Universidade Federal do Pernambuco (UFPE); membro da The International Association of Privacy Professionals (IAPP); foi professor pesquisador na área de Segurança da Informação no Departamento de Ciência da Computação da UnB. Por 13 anos foi consultor jurídico do Serpro e, por sete anos, coordenador de Segurança da Informação. Hoje é assessor da Diretoria-Executiva do Serpro com foco na LGPD, atuando na disseminação e aplicação da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais dentro do Serpro, no governo, empresas e sociedade.