Entrevista
Políticas Públicas
“O filme é melhor que a foto”

“Há áreas, como a da política social, na qual nós inovamos bastante nas últimas décadas, conseguindo resolver ou amenizar muito alguns problemas estruturais. E outras em que ainda estamos patinando, como segurança pública”, destaca Pedro Cavalcante, especialista em administração pública do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e doutor em Ciência Política pela Universidade de Brasília. Com pós-doutorado da School of International and Public Affairs (SIPA) da Columbia University, ele destaca nesta entrevista as complexidades e desafios que envolvem a construção de Políticas Públicas (PP, no jargão acadêmico).
O professor universitário também aborda a questão do uso de tecnologia no setor estatal e se diz satisfeito com a iniciativa do GovData, que promove não só colaboração com fins econômicos mas também engajamento entre vários órgãos públicos, algo que considera alinhado às últimas tendências do cenário atual de políticas públicas.
Serpro - Como está a situação no Brasil, hoje, na área de Políticas Públicas?
PC - Políticas Públicas, de modo geral, é uma área complexa. É uma disciplina que estudo há mais de 20 anos tentando entender. E quanto mais eu estudo, mais eu constato que é um fenômeno bastante dinâmico que faz com que haja sempre uma ansiedade, uma demanda crescente por melhorias na sua formulação, implementação, monitoramento e avaliação.
Hoje em dia, a percepção que a gente tem é que há uma melhora substancial no processo de construção de Políticas Públicas no Brasil, dentro de uma perspectiva histórica. Há 20 ou 30 anos, tínhamos muito menos conhecimento e capacidade estatal para formular implementação de Políticas Públicas.
É um processo contínuo de construção que pressupõe diversas dimensões: preparação da burocracia, no sentido técnico do Estado; constante capacitação, recursos de infraestrutura, recursos humanos, recursos financeiros. Tudo isso para que as políticas públicas tenham condições de ser assertivas e gerar eficiência e eficácia.
Acho que avançamos mais, nos últimos anos, na tentativa de inovar e construir alternativas de soluções para problemas complexos, dinâmicos e muitas vezes ambíguos, em uma realidade de muita dificuldade na estrutura do Estado brasileiro. Ela melhorou muito nas últimas décadas, mas ainda é problemática pela assimetria, uma desigualdade muito grande entre as esferas: o município vive uma realidade que,dependendo de sua localização, pode ser pior ou pode ser melhor. Os Estados têm problemas sérios de sobrevivência financeira. E a União, conforme estudos comparados sobre administração pública, é uma ilha de excelência se comparado aos nossos vizinhos latino-americanos.
Costumo dizer que a foto do Estado brasileiro não é tão bonita, mas quando a gente olha o filme, ele é muito melhor. É nítido um processo de qualificação e evolução - em algumas áreas mais, em outras, menos. Na política social inovamos bastante nas últimas décadas, conseguindo resolver ou amenizar alguns problemas estruturais. E em outras ainda estamos patinando, como segurança pública. Ainda não se encontrou uma forma de lidar com esses problemas cada vez mais organizados de violência urbana e criminalidade.
Serpro - Quais setores avançaram mais em Políticas Públicas?
PC - Eu acho que as políticas sociais brasileiras, sobretudo aquelas que pressupõem arranjos cooperativos e colaborativos com o Estado e municípios, e a sociedade civil. Nós temos experiência de políticas sociais bastante inovadoras nesse sentido replicadas mundo afora, e muito premiadas, como por exemplo, erradicação do trabalho infantil, transferência de renda. O próprio Sistema Único de Saúde, o SUS, tem muitos aspectos positivos, apesar de ser uma estrutura altamente complexa, apesar dos seus problemas.
Serpro - No que o Brasil precisa melhorar?
PC - Na verdade, também acelerar, porque nossos problemas e demandas são muito grandes, se comparados a outras nações de renda média ou mais desenvolvidas. Precisamos melhorar por duas razões: primeiro, para lidar com esses problemas estruturais da própria administração pública. Por exemplo, as falhas do próprio governo, como o excesso de patrimonialismo, clientelismo, corrupção, nepotismo, que ainda fazem parte da nossa realidade, infelizmente. Há também problemas relacionados à burocracia, no sentido negativo da palavra, como excesso de procedimentos, excesso de papéis, de processos, lentidão. E, do lado da sociedade, da economia, a gente tem um conjunto crescente de demandas sociais. A maioria da população brasileira ainda é marginalizada, em situação de vulnerabilidade, o que faz com que seja necessário que o Estado esteja sempre melhorando suas condutas na prestação do serviço público.
Além disso existem as questões conjunturais. São novos fatores que obrigam e pressionam o Estado a inovar e melhorar as suas condições. É o caso, por exemplo, da era da informação. Vocês, do Serpro, conhecem bem essa característica atual: são cobrados constantemente a melhorar os serviços, a aumentar a disponibilidade das informações. Hoje as pessoas têm acesso a tecnologias e o Estado fica pressionado a responder em tempo real. Por outro lado, os problemas passaram a ser entendidos como transversais, complexos, sem soluções claras, o que demanda repensar constantemente a atuação do Estado.
E, por fim, as novas demandas advindas de mudanças sociais, por exemplo, em termos demográficos. As pessoas passam a viver mais tempo, assim demandando mais do Estado, não só sob o aspecto de políticas da saúde, mas também de lazer, de previdência.
Serpro - Quais são as barreiras que devemos vencer para conquistar essas melhorias?
PC - São as dificuldades de se construir mais capacidade. O Estado precisa responder isso. É importante manter o dia a dia, formando, capacitando servidores, melhorando sistemas. Mas é importante também fomentar e construir uma cultura de inovação nesses órgãos, porque se os problemas são muito complexos e dinâmicos, principalmente a realidade da administração pública, então só a resposta tradicional e padronizada já não será suficiente. Esse é todo um movimento de construção do conhecimento e práticas inovadoras. Eu acho que o Serpro tem um laboratório de inovação justamente para lidar com essas demandas crescentes e não mais aquela resposta padronizada do dia a dia. Para construir cultura de inovação.
Serpro - Como a tecnologia pode contribuir para consolidar o processo de construção dessas políticas a curto prazo?
PC - A gente costuma dividir a área de inovação em diversas dimensões, campos, espaços. A tecnologia é uma delas. Tem um status muito importante. A grande maioria das ações pressupõe tecnologia. É uma ferramenta essencial para aumentar a informação, para dar agilidade e funcionalidade aos serviços públicos na prestação dos serviços públicos; para aumentar a transparência, também. Mas a gente não pode idolatrar a tecnologia como se fosse uma panaceia. Não é uma resposta para tudo. Ela é uma estratégia, uma ferramenta que auxilia, mas pressupõe colaboração, parceria, visão de longo prazo na implementação dessa tecnologia, interoperabilidade, ou seja, ela estar compatível com os sistemas existentes, com as realidades existentes. Tecnologia é uma ferramenta central, cada vez mais relevante, mas não é suficiente. Necessária, mas não suficiente. Ela precisa desses outros fatores complementares, digamos assim.
Serpro - Recentemente o governo federal lançou a plataforma GovData, focando nessa vertente de construção de políticas públicas. Essa ferramenta de transformação digital permite análise de cruzamento de dados com diferentes bases de soluções de governo. Na sua percepção, essa plataforma ajudará o governo na efetivação das políticas públicas?
PC - Fiquei muito satisfeito em conhecer essa experiência. Trabalho pesquisando a administração pública e fico feliz quando vejo inciativas como essa, que convergem um conjunto de tendências no cenário internacional, que contribuem para a inovação e a modernização do Estado.
O que observo dessa experiência: primeiro, ela promove transparência na administração pública, promove uso mais qualificado e o acesso à informação, que é central para a gente entender os problemas públicos, mas também para gerar soluções. Informação hoje, serve não apenas para diagnosticar a realidade, mas também para ajudar a gente a construir soluções que sejam compatíveis com a resolução desses problemas. Além disso, a inciativa do GovData pressupõe integração de dados e essa convergência de dados ajuda nesse processo de formulação e implementação de Políticas Públicas. Pressupõe coordenação - Serpro, Dataprev e MPOG. E há um incentivo muito grande para gerar cooperação, algo que é tendência na administração pública contemporânea, além de gerar economicidade.
Mas eu vejo até mais que economicidade, vejo aí, engajamento, abertura de acesso para participação popular, ou, pelo menos, para o acesso à informação e, principalmente, uma ferramenta para unir esforços no lidar com os problemas da administração pública e da sociedade brasileira.
Por fim, algo que também é inovador, tendência da gestão pública, e está bem alinhado com o GovData é a ideia do governo aberto, ou seja, utilizar ferramenta de tecnologia de informação e comunicação não só para facilitar a construção de soluções, mas também para fazer com que aumente o acesso e a participação do cidadão no processo decisório. Essa experiência vale destaque porque está muito convergente com as iniciativa mais atuais, então, Serpro e o governo, como um todo, estão de parabéns pela construção dessa iniciativa.
Para saber mais
Pedro Cavalcante tem inúmeras contribuições acadêmicas relacionadas ao cenário das políticas públicas do pais, entre elas, Gestão Pública Contemporânea: do movimento gerencialista ao pós-NPM (New Public Management) e Inovação no Setor Público: teoria, tendências e casos no Brasil.
O especialista também faz parte da Rede de Inovação do Setor Público (InovaGov) que até o dia 14 de maio reunirá artigos que apresentem a inovação como implementação de processos e métodos de mudança para compor a coletânea “Inovação e Políticas Públicas: superando o mito da ideia".
Segundo Cavalcante “Serão bem-vindos trabalhos que abordem casos de inovação em gestão e políticas públicas, com resultados comprovados, métodos e estratégias aplicadas, tais como design thinking, ciências comportamentais, inovação aberta, métodos ágeis, entre outros”. Para saber mais detalhes da chamada de artigos que comporão essa coletânea clique aqui.