Entrevista
“Novo bug do milênio” ou solução para o futuro dos dados pessoais?
Alguns brasileiros acham que uma nova lei é sinônimo de “mais proibições”, mas a lógica da LGPD não é atrapalhar, e sim gerar mais segurança jurídica, liberdade econômica, atualização do governo e privacidade ao cidadão: o qual é o centro da lei que, daqui a exato um ano, entra em vigor. É o que aposta o diretor Gileno Barreto, do Serpro
15/08/2019
A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) entra em vigor daqui a um ano. Preservar conteúdos privados não é mais uma opção, tornou-se um compromisso inadiável: tanto do cidadão, consigo mesmo; como do governo e de empresas que se relacionam com dados pessoais.
Desde sua aprovação, ou mesmo antes, diferentes iniciativas têm ocorrido para ajudar os cidadãos a conhecer mais os seus direitos, e para apoiar governo e empresas a cumprir a lei. Neste esforço, o envolvimento de todos que serão afetados pela LGPD é visto como essencial. O Serpro, empresa pública de TI do governo federal, também está engajado na troca de experiências e disseminação da nova lei.
A seguir, o diretor Jurídico e de Governança e Gestão do Serpro, Gileno Gurjão Barreto*, fala sobre a importância da LGPD para o país e para os brasileiros e sobre outras questões relacionadas à Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais que, a partir de 15 de agosto de 2020, chega de vez para modificar a forma de tratar dados pessoais e para aumentar a proteção a esses dados, no Brasil. Confira a entrevista.
O Brasil está em preparação para a LGPD, que entra em vigor em agosto de 2020. Na sua opinião, qual a importância da nova lei para o país?
"Sabemos que há desigualdades enormes no país. O grande ponto da LGPD é empoderar o cidadão, perante o Estado e as empresas. Assim, o indivíduo passará a ser senhor de seus dados, algo que ele ainda não sente que é"
A LGPD veio para “arredondar” a regulação sobre o uso e o tratamento de dados no Brasil. Antes, havia uma legislação muito esparsa. Sob a ótica do cidadão, principalmente, mas não limitada a ele, o país tinha o Código Civil, a Constituição e seu artigo V, a legislação sobre direitos autorais, o Marco Civil da Internet, algumas leis penais sobre o uso indevido de dados. Mas não havia um conjunto normativo que proporcionasse segurança jurídica às pessoas físicas e às pessoas jurídicas, para que essas pudessem lidar com dados pessoais sem sobressaltos. A LGPD é um guia normativo para que empresas, governo e cidadãos possam conviver harmonicamente em relação à utilização, propriedade e privacidade de dados pessoais.
Segundo o IBGE, o Brasil tem mais de 126 milhões de usuários de internet, e o acesso à web continua crescendo. Há, no país, quem defende que a lei garante mais proteção aos dados das pessoas, inclusive na web e nos meios digitais. E há, ainda, quem defende que a lei cria dificuldades para empresas e governo. Como avalia esse “suposto” descompasso?
Economicamente falando, governo, empresas e famílias são as três partes envolvidas no espaço social de uso dos dados. Como eu disse anteriormente, tudo que está na LGPD já existia. O que acontecia é que não havia um arcabouço metodológico, uma espinha dorsal que organizasse as relações entre essas três partes. Com a LGPD, temos um espaço mais delimitado. E, dentro dessa delimitação, o governo permanece com o poder de usar dados para segurança nacional, combate a fraudes, segurança pública. Esse poder-dever do governo de zelar por isso ficou muito claro. Também ficou muito claro, para o cidadão, que ele tem o poder de autorizar ou não o uso de dados pelas empresas. E ficou claro para as empresas os limites e requisitos de autorização e de consentimento que a lei estabelece para que elas possam usar os dados. Não vejo a lei como restrição de liberdade, ou como um empecilho à atividade econômica. Pelo contrário, a ausência da lei criaria uma grande insegurança jurídica no Brasil e faria com que essas relações fossem, à medida que o tempo passasse, crescentemente judicializadas e interpretadas de forma absolutamente distintas. O legislador antecipou-se a essa conflagração, que estava latente, e em linha com o regulamento europeu e com a tendência internacional de normatizar esse espaço digital.
Então, se a LGPD é um guia para a convivência harmônica, todos ganham com a nova lei, é isso?
Sim. A LGPD não é o “novo bug do milênio”, como tem sido "vendida" por aí. Nós brasileiros tendemos a olhar uma nova lei como um conjunto de proibições. Claro, a LGPD requer sim um grande esforço das empresas e do governo para adaptação, mas o objetivo da lei não é atrapalhar, mas sim ajudar a melhorar as relações sociais, o ambiente de negócio, e atualizar o governo, preservando os direitos individuais do cidadão, que é o centro da lei. E direitos esses que, hoje, se refletem nos dados que o cidadão produz sobre si e que são coletados digitalmente.
O Brasil é gigante, com níveis de acesso à informação desiguais. Imagine que, daqui a cinco ou dez anos, a LGPD esteja em um estágio médio de maturidade. Na sua opinião, qual será a principal mudança cultural que o país terá, quando a lei chegar a esse nível?
Um princípio básico do Direito é o de que ninguém pode alegar o desconhecimento de uma lei. Porém, na prática, sabemos que há desigualdades enormes no país. O grande ponto da LGPD é empoderar o cidadão, perante o Estado e as empresas. Assim, o indivíduo passará a ser senhor de seus dados, algo que ele ainda não sente que é, uma vez que o estágio de maturidade da digitalização da nossa sociedade ainda é baixo. À medida que a digitalização for uma realidade, à medida que ela progredir, e isso ocorrerá em progressão geométrica, os cidadãos vão se conscientizar mais sobre o poder que têm sobre seus dados. E, também, sobre como esses dados podem ser utilizados pelo governo para a formulação e a execução das políticas públicas, como as de segurança pública, por exemplo. Portanto, penso que daqui a cinco ou dez anos o Brasil terá o cidadão cada dia mais consciente sobre sua individualidade, suas responsabilidades perante o Estado e também sobre as responsabilidades do Estado perante si. Acredito que essa conscientização será o grande benefício trazido pela LGPD.
Em junho deste ano, foi aprovada a criação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD). Qual é a importância de se ter uma autoridade nacional como essa?
A ANPD será essencial para normatizar a LGPD, ouvindo, para isso, a sociedade em todas as suas áreas. Ouvindo governo, empresas e cidadãos. Vale lembrar que, muitos anos atrás, os nossos dados não valiam absolutamente nada. Agora, esses dados são insumos, são matéria-prima para uma série de atividades, como as econômicas. Boa parte do PIB do Brasil, e boa parte do PIB do mundo, hoje, se baseia no tratamento e na interpretação desses dados. Logo, é preciso que o tratamento seja regulado.
O Serpro é guardião de uma parcela importante de dados pessoais dos cidadãos, por meio de sistemas estruturantes e de banco de dados. Que diferencial acredita que a empresa pode oferecer, no contexto da LGPD?
Esses dados que estão sob a “custódia” do Serpro são dados disponibilizados pelo cidadão para que ele, durante todo seu ciclo de vida, se relacione com as diversas instâncias governamentais. O Serpro, mesmo que não existisse a LGPD, já estaria no estado da arte em termos de proteção dos dados dos cidadãos. Isso porque a empresa tem uma amplitude de atuação, por exercer ao mesmo tempo os papéis de controlador e de operador em quase todas as circunstâncias. Além disso, porque nossas operações de tratamento de dados, seja para viabilizar políticas públicas, ou por solicitação das instâncias governamentais, ou para disponibilizar serviços para a iniciativa privada, têm uma complexidade que dificilmente é encontrada no setor privado. Há no Serpro a troca de informações envolvendo governo-cidadão, governo-empresas, e governo-empresas-cidadão. Ou seja, por essa amplitude de atuação e tecnologias que a empresa possui, podemos contribuir para a sociedade dando a nossa melhor interpretação sobre como dados devem ser mantidos, tratados e protegidos.
O Serpro poderia só seguir a lei, se quisesse. Mas a empresa quer mais, quer ser uma referência em LGPD no Brasil e impactar, assim, a sociedade, o ecossistema de inovação, as empresas. Qual a validade do Serpro assumir esse papel?
O negócio digital, embora esteja crescendo e permeie as diferentes relações sociais, não é algo de amplo domínio, ele é dominado por uma determinada parcela da economia. Quando olhamos para o governo, por exemplo, áreas que têm intimidade com tecnologia da informação ou processamento de dados não necessariamente possuem o conhecimento técnico necessário e suficiente para observar o estado da arte na proteção dos dados dos cidadãos. Nesse ponto, o Serpro aparece como um grande provedor de tecnologia para o governo, em todas as suas esferas. A empresa pode e deve contribuir muito para o governo adaptar-se a essa nova realidade, que é a realidade da proteção aos dados do cidadão, cumprindo a sua função de viabilizador das políticas públicas. Realidade essa na qual os dados foram entregues pelo cidadão a empresas privadas e, em última instância, ao governo, que pode assim exercer suas importantes atribuições de combate à fraude, de segurança nacional e de segurança pública.