Artigo
Direitos ao esquecimento, à privacidade e à informação: como se relacionam?
Conheça casos nacionais e internacionais desses direitos que se interligam na era digital, conforme demonstra artigo do advogado Ulysses Machado
4/3/2020
O direito ao esquecimento não é uma novidade do século XXI. Já desde o século XVIII, e com mais ênfase no início do século XIX, há notícias de construções bastante sofisticadas em prol dessa tese.1
O que, contudo, a tese defende? Defende que todos, independentemente de sua condição pessoal, têm direito a que situações e circunstâncias desagradáveis ou constrangedoras sejam retiradas de seu “histórico pessoal”, prevenindo a “tatuagem da reputação”. A crítica social deve recair sobre a conduta do indivíduo, mas não sobre sua personalidade e nem de modo perpétuo.2
O próprio direito penal – o mais grave dos direitos e o último direito a ser aplicado – já compreende, nos dias atuais, a importância de se direcionar a sanção ao ato praticado e não à pessoa do agente. E nem estamos falando das tendências mais “garantistas”. O direito penal tradicional já cedeu espaço a esse princípio e à importância de não seguir a feição do que seria um “direito penal do inimigo”. Não se admite, em nosso modelo, “o direito penal dos outros”, o direito feito para “aqueles”; para os “estranhos”; para “os ‘não-nós’ que delinquem”.
Trata-se de um conceito fundamental decorrente do princípio da dignidade humana e do entendimento pacífico de que todos têm o direito de sobreviver ao estigma, ao embaraço, mas, sobretudo, ao constrangimento de ter sua pessoa e seus valores associados de forma perpétua a uma dada condição ou a um dado fato.
Como um direito de índole humana e fundamental, limita-se, complementa-se e conflita com o direito à informação e com a liberdade de expressão, ambos direitos de mesma categoria e status constitucional. Nesse conflito, o judiciário examina, pondera e aplica a decisão que melhor atenda aos interesses da sociedade e das partes, em cada caso concreto.
Na Europa
A discussão em torno da proteção ao “direito de ser deixado em paz” reemerge, agora, na era digital, a partir de dois cases específicos ligados às mídias sociais: dois cidadãos europeus usuários de serviços da linha “web 2.0”3 (Google e Facebook) suscitaram, perante os poderes constituídos daquele continente, a discussão em torno de seus direitos de pessoa humana.
O case Mario González
O primeiro case refere-se à história de Mario Costeja González, um advogado que passou por situação constrangedora (um apartamento que quase teria sido levado à hasta pública como pagamento de dívidas) veiculada em periódicos e perpetuada nos
motores de busca do Google.
No caso de González, a matéria acabou por ser julgada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, já que envolvia interpretação do disposto na Diretiva 95/464, de 24 de outubro de 1995, relativa à proteção das pessoas naturais no tocante ao tratamento de
dados pessoais e de sua livre circulação.
O exame do texto da decisão5 permite observar o cuidado da corte julgadora de não deixar que a tutela ao direito de esquecimento se estendesse à dimensão pública das relações humanas, preservando tanto o direito ao esquecimento, de um lado, quanto o direito à informação, de outro. Pode-se ver, na decisão, que a garantia dada ao “direito de ser deixado só”, no entendimento da referida corte, não pode representar uma redução da dimensão pública e do direito à informação e ao conhecimento.
Curioso que tenha havido, por parte do colegiado, a preocupação de não deixar que sua jurisdição, no caso concreto, em proveito de um particular, representasse uma indesejada extensão prejudicial ao direito de informação.
O case Schrems
O segundo case foi o do estudante austríaco Maximilian Schrems, que, a partir de um trabalho acadêmico sobre privacidade, elaborado inicialmente quando estudava nos Estados Unidos, constatou que seus três anos de usuário do Facebook, correspondentes a 1.200 páginas de informação pessoal, jamais eram apagados, por mais que ele se desligasse daquela rede social e por mais que solicitasse formalmente tal deleção.
Em virtude dos dois processos, a Comissão Europeia se mobilizou no sentido de regrar a atuação de serviços de redes ou de manipulação de dados pessoais, como é o caso do Facebook e do Google, consagrando com clareza o direito ao esquecimento e à deleção de informações de seus usuários. A lei garante aos usuários o poder de ditar quando suas informações haverão de ser deletadas e garante o correspondente direito de ação quando esse desígnio vier a ser violado. É o primado do princípio da autodeterminação informativa.
As reações de ambos (Facebook e Google) foram opostas. Richard Allan, do Facebook, posicionou-se no sentido de que o valor de seus serviços está na disponibilidade e integridade dos dados de seus clientes e na segurança de tê-los resguardados. Para Allan, seus usuários estão preocupados justamente com o oposto: a permanência de seus dados (disponíveis), e uma lei europeia que garanta o direito ao esquecimento constituirá um erro.6 Já o chairman do Google, Eric Schmidt, manifestou, em palestra na Universidade de Manhatttan, sua posição no sentido de que a internet precisa ter o que ele chama “botão de delete”, garantindo a possibilidade de eliminar registros indevidos ou constrangedores. Para ele, o lema “uma vez online, sempre online” não deve ser valorizado: “Há situações em que apagar é a coisa certa a fazer”.7
No Brasil
O direito ao esquecimento, no Brasil, exibe casos referenciais não tão ligados à economia digital, mas igualmente importantes em termos de revitalização do princípio da autodeterminação. Dois julgamentos do STJ evocaram a valorização do direito ao esquecimento, embora cedendo, em ambos os casos, em prol do direito à informação.
O case Curi (família Curi versus Globo)
O primeiro caso foi o julgamento do recurso especial n° 1.335.153/RJ, interposto por Nelson Curi e outros, contra Globo Comunicação e Participações S/A. O recurso especial em questão foi interposto de decisão proferida em ação na qual a família de Aída Curi se indignou contra uma matéria específica evocando os 50 anos do acontecimento em que a vida da jovem fora ceivada sob condições trágicas.8
O STJ, no caso, decidiu, sim, pela garantia do direito ao esquecimento, sem contudo ter garantido aos familiares um pretendido direito à indenização.9 A ponderação de valores na discussão dos princípios em conflito (privacidade e acesso à informação) mostra-se uma constante, como pode ser visto na dicção do relator, quando da apreciação do mérito.10 E, na linha desse raciocínio, o magistrado pondera que é preciso dar transparência e conhecimento à resposta estatal sem deixar frutificar o alimento à mera curiosidade mórbida.
Hoje o caso Aída pende de decisão final do Supremo Tribunal Federal, em recurso extraordinário, sob a relatoria do ministro Dias Toffoli. O caso encontra-se concluso para julgamento e, para sua completa discussão, foi realizada, em 2017, concorrida
audiência pública.11
O case Candelária
O segundo caso em que o princípio do direito ao esquecimento, como corolário do princípio da dignidade humana, foi aplicado de forma explícita foi o da matéria jornalística promovida pela mesma ré a respeito da chamada “chacina da Candelária”. Jurandir Gomes de França, o autor, ajuizou ação de reparação de danos morais contra a TV Globo Ltda. (Globo Comunicações e Participações S/A), em decorrência de matéria por ela veiculada.
O informe injustamente “ressuscitado” pela matéria jornalística foi relativo ao fato de o autor ter sido indiciado como coautor da citada chacina ocorrida em 23 de julho de 1993, no Rio de Janeiro. O autor, ao final submetido ao Tribunal do Júri, veio a ser absolvido por unanimidade.
Tendo sido procurado para dar entrevista, recusou-se. O programa, no entanto, foi ao ar em junho daquele ano (2006) e no conteúdo da matéria foi informado que o autor foi um dos indiciados – mas que fora absolvido. A matéria de fato não faltou com a verdade, mas a vida do autor sofreu uma reviravolta, a ponto de ter que se mudar da comunidade em que vivia, em função da hostilidade que veio a sofrer, com risco para sua própria família. No caso, o STJ se manifestou pela proteção do direito ao esquecimento com manutenção da responsabilidade pelo ressarcimento12 .
E, pouco antes desses eventos, as VI Jornadas de Direito Civil haviam consagrado o enunciado de n° 53113, cujo teor, na íntegra, foi devidamente colacionado nos dois julgados acima discutidos. Dois elementos são especialmente importantes, no enunciado. Primeiramente, o fato de que as novas tecnologias vêm trazendo especial preocupação no tocante ao aspecto da dignidade. Assim, se não estamos falando de uma “novidade” ao tratar o direito ao esquecimento, estamos falando, sem sombra de dúvida, de um novo contexto, mais complexo, mais lesivo, mais perigoso. Nesse sentido, a ressalva do relator14, nos dois recursos especiais é de grande felicidade.
Em segundo plano, na sua parte final, o enunciado vem – tal qual o tribunal europeu, no caso González; tal qual a União Europeia, no caso Schrems; tal qual as demais decisões que vimos revisitando até aqui – oferecer ressalva categórica à importância da “dimensão pública” e ao direito à informação.
O relator demonstra, ainda, que a nossa Corte Superior assentou entendimento de grande importância em prol da proporcionalidade na aplicação do princípio: se até mesmo aos condenados é dada proteção em prol do direito ao esquecimento, com muito mais razão essa proteção deve ser dada a quem, como Jurandir Gomes de França foi, ao final de contas, inocentado, com negativa de autoria.15
Sobre o argumento da veracidade, os fundamentos da decisão trazem importante aspecto de valor doutrinário: o simples fato de se excepcionar a veracidade não traz validade ao aspecto danoso da perenidade inaceitável.16 E foi justamente isso que aconteceu com Jurandir: a desconfiança comunitária se ascendeu em torno de uma possível absolvição acidental, especialmente porque a reportagem trazia também um viés de crítica à incompetência dos órgãos de investigação.
Nos últimos três anos, temos visto o aumento fragoroso, nas mídias sociais, de uso do bordão “bandido bom é bandido morto”, apontando para uma suposta inércia (infundada) dos órgãos públicos na apuração e condenação de criminosos. O que tenho visto e identificado, em minhas prospecções acadêmicas, na Universidade de Brasília (UnB) e na Comissão de Segurança Pública da OAB/DF, ao contrário, é um eficientismo penal insaciável com o abarrotamento das instituições carcerárias e com o aumento da chamada “violência institucional”, em um ciclo vicioso incessante.
Como o STF ponderará o conflito de princípios fundantes?
Há uma justificada esperança de que o STF julgue o caso Aída Curi (já “mais que maduro, para tanto”) ainda no ano de 2019. Na aplicação do princípio da proporcionalidade, o STF tenderá por valorizar o direito ao esquecimento e à privacidade da família Curi? Ou patrocinará a valorização do direito à informação e à liberdade de expressão jornalística da Globo?
Nosso palpite é no sentido de que prevalecerá a segunda hipótese. Em que pese a dor da família e os aspectos pessoais de sua vida, em julgamento recente o mesmo STJ abraçou essa vertente.
Trata-se do julgamento da Adin n° 4.815 (Proc. 9964502-12.2012.0.01.0000), em que o STF decidiu que os biografados não têm direito a uma “censura prévia” ou a um direito de “autorizar” biografias a seu respeito. Prevaleceram, no caso, o direito ao
conhecimento, à informação e à liberdade de expressão. Porém, essa questão das biografias e seus desdobramentos será objeto de outro artigo específico, em matéria de privacidade e proteção de dados. Nele, discutiremos o conflito entre o direito à intimidade e o direito à informação, examinando cases reais em discussão.
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