Entrevista exclusiva
A LGPD é essencial para que cidadão confie mais no governo, e vice-versa
Para Ciro Avelino, secretário-adjunto de Governo Digital do Ministério da Economia, a lei traz confiança mútua e contribui, assim, para a transformação digital no país
6/12/2019
Um dos focos do governo federal é na transformação digital. E essa transformação engloba metas como levar mais serviços públicos para o universo web e centralizar o acesso a eles. Um dos produtos criados em prol disso é o portal gov.br, que unifica canais do governo para que o cidadão não precise navegar em vários sites e aplicativos para encontrar informações e serviços.
Para Ciro Avelino, da Secretaria de Governo Digital do Ministério da Economia, a qual está diretamente envolvida na evolução do gov.br, falar sobre transformação digital é falar também sobre a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). A seguir, o secretário-adjunto da pasta aborda a conexão entre transformação digital e LGPD e o impacto desses temas na relação entre cidadão e governo. Além disso, ele reforça que a LGPD, prevista para entrar em vigor daqui a oito meses, precisa da atenção de todos que serão afetados por ela para se modificar, de fato, o modo de tratar dados pessoais e, então, aumentar a proteção a esses dados, no Brasil.
Ciro Avelino, antes de atuar no Ministério da Economia, foi secretário-adjunto de Tecnologia da Informação e Comunicação no Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, foi gerente nacional de Relacionamento com Clientes na Caixa Econômica Federal, e possui expertise em Administração Estratégica de Sistemas de Informação pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Confira a entrevista.
Em um evento de governo, neste ano, você falou sobre a sociedade brasileira, reforçou que ela já é digital. E a LGPD relaciona-se a isso, pois trata da proteção aos dados das pessoas, principalmente no universo digital. A LGPD é importante para que o Brasil avance e atenda às novas demandas dessa sociedade digital?
A proteção a dados pessoais é, hoje, um dos pilares da transformação digital, não só de governo, mas de toda a sociedade. Quando começamos a atuar em uma sociedade extremamente baseada em dados, e na qual esses dados passam a ser extremamente acumulados e valorizados, cuidar da privacidade do individuo é uma necessidade que tem que vir em conjunto e, por isso, a sociedade brasileira aprovou a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais em 2018, traçando já algumas diretrizes e procedimentos para se garantir essa privacidade. A nossa sociedade discutiu durante muito tempo o tema, acompanhou o movimento de outras partes do mundo, como da Europa, com o GDPR, e chegou em um nível de maturidade muito bacana com a promulgação da LGPD. Agora, aguardamos a constituição da Autoridade Nacional de Proteção de Dados, que é quem terá a prerrogativa de manter o equilíbrio do sistema. Afinal, a aplicação nova, de um princípio de proteção, num meio novo que é o digital, pressupõe que uma instituição modere os interesses, e é pra isso que basicamente será formada a ANPD. E, no governo, temos a prerrogativa de utilizar os dados inclusive para dar eficiência à Administração Pública. A LGPD determina, por exemplo, que os dados têm que ser interoperáveis dentro do governo, respeitadas as questões de privacidade do indivíduo, e que o setor público precisa necessariamente dar conhecimento ao cidadão de como e para que está usando os dados que são capturados.
E em que estágio o governo está nessa interoperabilidade, inclusive no que tange a LGPD?
"Precisamos gerir as informações de forma que a sociedade se sinta mais confiante no governo, e o governo mais confiante na sociedade"
É uma agenda que tem evoluído rapidamente. Recentemente, inclusive, houve a publicação do decreto nº 10.046, que dispõe sobre a governança no compartilhamento de dados no âmbito da administração pública federal e institui o Comitê Central de Governança de Dados. Ou seja, o decreto, à luz do artigo 25 da LGPD, traça diretrizes e cuidados necessários para que haja a interoperabilidade e, assim, o governo entregue um serviço de maior qualidade, tirando do cidadão o papel de "agente cartorário de governo". A proposta é que o cidadão não precise ficar transitando, com uma série de documentos, e reapresentando isso a cada nova interação com um órgão público. Estamos num processo de amadurecimento da relação digital do governo com a sociedade e essa agenda tem ganhado muito espaço nas discussões, e não só com foco no compartilhamento como também na privacidade. Acredito que com a publicação do decreto o governo passa a contar com normas claras sobre como deve trocar dados, e com um colegiado para revisar decisões monocráticas dos órgãos e determinar as melhores técnicas e práticas para a interoperabilidade.
O que mais está no radar do colegiado e da Secretaria, no que se refere à LGPD?
A ideia é que o Comitê Central de Governança de Dados interaja de forma clara e direta com a ANPD, por exemplo. O governo está preparando sua estrutura, assim como toda a sociedade está se preparando para a implementação da LGPD. Além desses movimentos mais recentes, a Secretaria de Governo Digital tem trabalhado, com apoio de entes como Serpro e Dataprev, para construir plataformas em que tenhamos mais governança sobre os dados que são interoperáveis dentro da Administração Pública. Há um movimento claro de preparação do governo para a entrega de mais eficiência ao serviço publico, pois é para isso, principalmente, que existe o compartilhamento de dados. Além disso, a proposta é termos uma governança maior em relação à proteção dos dados pessoais, uma vez que, hoje, um dos artigos mais caros que o governo toma conta é o conjunto de informações sobre as características individuais do cidadão e sobre as transações desse cidadão com o Estado.
Por falar em proteção aos dados pessoais, há a PEC 17/2019, que quer incluir essa proteção na Constituição. Também está em debate, na Câmara, se a União deve ou não legislar de modo privativo sobre o tratamento de dados. Qual um bom caminho para que a LGPD e a PEC - caso essa seja aprovada - "peguem", de fato, num país como o Brasil, tão grande e diverso?
Com relação aos dados, saliento novamente que eles são diferentes de qualquer outro ativo. A informação tem uma portabilidade que é característica dela, e a ideia é que ela se movimente mesmo e circule em todo o Estado para prover serviços melhores ao cidadão. Fora esse propósito, aí é que temos que ter governança para evitar desvios de função. E a proposta é que a ANPD possa ajudar nesse sentido, e que os próprios comitês de gestão de cada instituição, de cada poder, de cada ente federado, possam construir, em conjunto, um único ecossistema de governança de dados. Essa é a nossa expectativa, que tenhamos um grande sistema de governança. E um ecossistema que não esqueça que governança deve também ser entendida como a necessidade de definir quem pode tomar decisões e quais são as decisões possíveis de serem tomadas, respeitando àquilo que já está definido na legislação ou que eventualmente venha a constar na Constituição. Por fim, os desejos da sociedade são manifestos em forma de lei, ou até em alterações na própria Constituição e, nesse sentido, as alterações da PEC vão amadurecer no Congresso e estamos acompanhando essa e outras discussões. E acho que Estados, municípios, sociedade, empresas, todos precisam parar e analisar quais informações detêm, geram, capturam para, assim, perceber como vão interagir nesse grande ecossistema.
O governo tem divulgado que a sociedade civil, ao sugerir até mesmo soluções tecnológicas, é uma das parceiras na evolução do portal gov.br. Acredita que a sociedade civil também pode contribuir na construção de ferramentas em prol da proteção de dados pessoais?
Sim. Acho que ela pode e deve. O governo precisa se entender como plataforma, e entender que nem sempre a melhor solução para a sociedade virar de uma construção do próprio governo. Podemos entregar elementos para que a sociedade construa soluções para si. Isso já acontece em uma série de situações, mundo afora e aqui no Brasil, em que o governo fornece informações, tudo com controle de segurança e privacidade, para que a sociedade organize soluções possíveis de serem entregues ao cidadão. As soluções de plataforma, sejam as de governo para governo, sejam as do governo para a sociedade, começarão a ganhar mais importância por conta do conceito de permeabilidade. Afinal, não existe um governo isolado da sociedade, nem na execução da política pública, tampouco na construção dessa política. E quando se fala dessa construção, não se está falando somente de governo com dados abertos voltados para a transparência. Permitir consultas públicas é muito importante, e o Brasil tem avançado bastante nisso. Porém, é essencial que o governo desenvolva modelos de negócio a partir de ferramentas que compartilhem com a sociedade informações estratégicas para que ela também tome melhores decisões.
Há algo mais que gostaria de destacar considerando o momento em que estamos, de pouco menos de um ano para que a LGPD entre em vigor?
É importante compreender que esse processo atual no Brasil se constrói em conjunto, com governo, sociedade, empresas. A Estônia, que tem 99% dos seus serviços afetados pelo meio digital, e a Dinamarca, que lidera o ranking de e-gov no mundo, mostram que o desafio da privacidade, até para países que avançaram significativamente no tema, é algo que ainda está sendo construído. E especialistas desses países defendem que isso precisa ser construído junto com a sociedade. E esses exemplos mostram que o Brasil pode e deve seguir na construção de um ecossistema que gere confiança para todos, precisamos gerir as informações de forma que a sociedade se sinta mais confiante no governo, e o governo mais confiante na sociedade. Ou seja, um sistema que, por um lado, propicie que o governo confie mais no cidadão e deixe de fazer certas exigências desnecessárias e burocráticas, que tomam tempo e energia do cidadão. E que, por outro lado, permita que o cidadão confie mais na Administração Pública e entenda que as informações dele, que estão com o governo, estão guardadas sob um conjunto de regras e de governança. Portanto, a LGDP é pilar fundamental para a transformação digital, pois gera confiança para esse ecossistema.
Bem, se lá na Dinamarca e na Estônia, que já têm o GDPR, ainda há muito que fazer, então o Brasil está no rumo certo, é isso?
Estamos no caminho e nosso país não pode esperar o mundo tomar certas decisões para vir a reboque. Afinal, a tendência é que a informação tenha, inclusive, circulação transfronteiriça. Se há um outro ecossistema, no mundo, que já tem maior maturidade em relação à proteção de dados, nosso país tem que estar ao lado dele, senão ficaremos fora das relações internacionais. E é preciso, mais que esperar decisões tomadas por outros países e organizações multinacionais, acompanhar e forçar o Estado brasileiro a se adaptar a essa realidade, que é a de cuidado com a privacidade do cidadão.